Postagens

Mostrando postagens de setembro, 2024

O sussurador

  O cavalo tinha o pelo tão preto quanto o carvão. Olhos assustadiços, em constante movimento, sarapantados, em permanente estado de alerta, como se estivesse buscando um ponto de fuga. As orelhas moviam-se em todas as direções, captando todo e qualquer som ao redor. Quando tentaram pegá-lo para domar, defendeu-se com o vigor dos coices e saltos e com as mordidas, que distribuía a granel. Um dos homens teve uma perna quebrada e por isso desistiram de amansá-lo e passaram a chamá-lo de Diablo. Naqueles tempos de fronteira indefinida, onde os ermos da pampa não tinham cercas, e os horizontes alongavam-se a perder de vista, era comum que, vez por outra, surgissem andarilhos em busca de ocupação – na maioria das vezes em troca de um teto e um prato de comida. Foi assim que apareceu Miguel. Quando perguntaram pelo sobrenome, respondeu que era Miguel e só. Franzino, meio índio, cabelo liso, tão escuro quanto o pelo do cavalo, escorrido até os ombros e preso por uma vincha de tento ...

Mestre Teneco

     Mestre Teneco era sambista. Era mestre não se sabe de que artes, já que mal sabia desenhar o próprio nome. Ostentava no dedo da mão direita um belo anel com uma safira azul, que comprou em um arrobo de vaidade, sacrificando a comida de vários dias na mesa da família e que, algum tempo depois, alguém lhe disse que era um anel de formando em engenharia.     Foi o suficiente para dar-lhe a ideia de criar o Bloco dos Engenheiros, composto em sua grande maioria pelos operários que carregavam sacos de arroz no engenho. Irônicos e debochados, tomaram para si o nome do bloco carnavalesco. Além deles havia os serventes da construção civil, os garis, as mulheres da esquina do boteco do Justa, e toda a vizinhança do bairro, que fazia da rua o palco para a festa do carnaval.     Além de carnavalesco, Teneco tocava atabaque na terreira do Pai João, onde as batidas convocavam as entidades com seu ritmo cadenciado e forte. Em contrapartida, causavam pr...

O homem que domava metais

     Seu Doralício era ferreiro. Fazia do carvão em brasa seu coadjuvante no domínio que tinha sobre o metal. Do ferro em brasa ele tirava facas, facões, enxadas e alavancas para o trabalho diário na cidade ou no campo. Fazia ferro para carroças; para os arreios do cavalo, fazia estribo, freio e argolas para peiteira e laço.      Encantava-me passar por ali e vê-lo puxando a corrente do imenso fole que soprava o carvão, para depois retirar o ferro vermelho em brasa e martelar contra a bigorna. Cada martelo era um tom. O martelo maior, que depois descobri chamar-se marreta, ele usava para a parte mais bruta, quando o ferro ainda não se amansara. À medida que a amizade do homem com o metal ia crescendo, diminuía o tamanho do martelo, o som se tornava mais agudo e mais suave. E dali saíam as ferramentas e adornos para o uso diário.      Por conversar tanto com o metal, ele quase não conversava com pessoas, o que acredito ter sido o motivo d...

Por que do título

   Manojo é uma unidade de medida imprecisa, já que se refere ao que cabe na mão. Partindo desse princípio, o manojo de uma criança é menor que o de um adulto e, mesmo entre estes, o tamanho da mão varia. Mas, e de onde veio a ideia desse título?  Foi há mais de duas décadas quando conversava com a querida professora Vane Soares e ela me relatava suas experiências em escolas da zona rural de Santana do Livramento. Na ocasião, contou que estava ensinando noções de quantidade aos alunos de uma sala multisseriada e, depois de explicar a dezena, centena, milhar, dúzia e meia dúzia, um aluno levantou a mão e disse que ela havia esquecido de citar o manojo. Na zona rural é expressão corriqueira colher um manojo de aveia para alimentar uma vaca, ou um manojo de salsinha para preparar a comida. Essa prática remete a Paulo Freire, quando diz que  "Não há saber mais ou saber menos. Há saberes diferentes" . Assim nasceu este despretensioso blog, que reúne histórias que escrevi ...

Os últimos

  Depois do momento de tristeza após a morte da cadela Batuta, Antônio jurou nunca mais criar cachorros. Já estava com sessenta e três anos e havia perdido a conta de quantos mascotes tivera e de quantas lágrimas derramara a cada perda de um amigo peludo.   Nos últimos doze anos, Batuta foi quem fez companhia ao casal sexagenário com suas brincadeiras, correrias e com o sempre bem-humorado semblante canino. À medida que envelheceu, tornou-se mais tranquila, aconchegava-se junto a eles no sofá e dormia placidamente no tapete ao lado da cama.   Determinado a não ter mais mascotes, recebeu, algumas semanas depois, a visita da filha, acompanhada dos dois netos. A pequena Luiza entregou ao avô uma caixa de sapatos com alguns furos na tampa e, ao abrir, o homem deparou-se com uma bolinha de pelos. O cachorrinho não devia ter mais do que dois meses, era branco, com algumas manchas pretas pelo lombo, a cabeça também era preta, com uma linha em forma de “V” alongado que iniciava ...