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Mostrando postagens de abril, 2025

O grão de trigo – uma crônica de despedida

            Imagino que o vento ao qual Caetano se referia, que sopra a areia do Saara sobre os automóveis de Roma, estivesse vagando pela Praça de São Pedro quando o melancólico e triste badalar do sino anunciou o fim da jornada do Sumo Pontífice. Francisco, um bonaerense nascido Jorge Bergoglio, levou ao Vaticano a calorosa receptividade latina, trocando o frio beijo no anel papal pelo fraterno abraço; mostrou ao mundo que o evangelho de Cristo, mais do que lido nos suntuosos salões romanos, pode – e deve – ser vivido todos os dias, em todos os cantos do mundo e não teve medo de erguer a voz pelos oprimidos, como se lê em Isaías 1:17 “Aprendei a fazer o bem; procurai o que é justo; ajudai o oprimido; fazei justiça ao órfão, tratai da causa da viúva”. O barco de São Pedro, agora sem timoneiro, jogou âncora e estacionou, à espera daquele que vai ocupar o trono papal. A expectativa sobre o novo pontífice é imensa. Será que ele colherá a herança bend...

A Equação das Coisas Imperfeitas

O passar dos anos me concedeu certas habilidades que eu reconheço que não me pertenciam na juventude. Uma delas foi a indelicada mania, ainda que discreta, de prestar atenção nas conversas dos outros. Faço isso no transporte coletivo, onde a miscelânea cultural por vezes me assusta, pela imensa estupidez de certos comentários mas, por outro lado, me surpreende pela filosófica profundidade de frases feitas, jogadas ao acaso. Outro dia, duas senhoras comentavam sobre o falecimento de um conhecido. Ambas rasgavam elogios àquele que, deduzi, foi colega de trabalho e, ao que tudo leva a crer, era professor de matemática, o que me levou a associar aquelas duas senhorinhas a um longo período de exercício do magistério. Estava chegando a meu destino e confesso que tive vontade de saltar do ônibus em outro ponto, com o intuito de ouvir mais um pouco da conversa. Entretanto, pressionado pelo horário marcado, acionei o sinal de parada e, quando me levantei do assento, ainda ouvi uma delas diz...

O Espelho da aposentadoria

  Hoje pela manhã parei diante do espelho do banheiro e não reconheci o homem que me encarava. A barba por fazer, os cabelos grisalhos despenteados e a camisa, que estava usando pelo terceiro dia consecutivo, pareciam pertencer a um estranho. Ou talvez a um fantasma do meu antigo eu. Aposentar-me foi como descer de um trem em uma estação deserta. Por mais de três décadas acordei cedo, tomei banho, escolhi a roupa do dia e fui ao encontro do mundo, quer tenha sido na iniciativa privada, em uma escola estadual, ou na Caixa econômica Federal, de onde saí para o tão almejado momento das férias intermináveis.   Nessa época, mesmo nos fins de semana, eu fazia a barba, vestia uma camiseta limpa e estampava no rosto a alegria de ser útil. Agora que os dias são um nada fazer contínuo, chego a ficar cinco, seis dias sem tocar no barbeador e o relógio de pulso fica esquecido na mesinha ao lado da cama. No início, achei libertador. "Finalmente sem chefe, sem horário e sem as metas q...