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O grão de trigo – uma crônica de despedida

            Imagino que o vento ao qual Caetano se referia, que sopra a areia do Saara sobre os automóveis de Roma, estivesse vagando pela Praça de São Pedro quando o melancólico e triste badalar do sino anunciou o fim da jornada do Sumo Pontífice. Francisco, um bonaerense nascido Jorge Bergoglio, levou ao Vaticano a calorosa receptividade latina, trocando o frio beijo no anel papal pelo fraterno abraço; mostrou ao mundo que o evangelho de Cristo, mais do que lido nos suntuosos salões romanos, pode – e deve – ser vivido todos os dias, em todos os cantos do mundo e não teve medo de erguer a voz pelos oprimidos, como se lê em Isaías 1:17 “Aprendei a fazer o bem; procurai o que é justo; ajudai o oprimido; fazei justiça ao órfão, tratai da causa da viúva”. O barco de São Pedro, agora sem timoneiro, jogou âncora e estacionou, à espera daquele que vai ocupar o trono papal. A expectativa sobre o novo pontífice é imensa. Será que ele colherá a herança bend...

A Equação das Coisas Imperfeitas

O passar dos anos me concedeu certas habilidades que eu reconheço que não me pertenciam na juventude. Uma delas foi a indelicada mania, ainda que discreta, de prestar atenção nas conversas dos outros. Faço isso no transporte coletivo, onde a miscelânea cultural por vezes me assusta, pela imensa estupidez de certos comentários mas, por outro lado, me surpreende pela filosófica profundidade de frases feitas, jogadas ao acaso. Outro dia, duas senhoras comentavam sobre o falecimento de um conhecido. Ambas rasgavam elogios àquele que, deduzi, foi colega de trabalho e, ao que tudo leva a crer, era professor de matemática, o que me levou a associar aquelas duas senhorinhas a um longo período de exercício do magistério. Estava chegando a meu destino e confesso que tive vontade de saltar do ônibus em outro ponto, com o intuito de ouvir mais um pouco da conversa. Entretanto, pressionado pelo horário marcado, acionei o sinal de parada e, quando me levantei do assento, ainda ouvi uma delas diz...

O Espelho da aposentadoria

  Hoje pela manhã parei diante do espelho do banheiro e não reconheci o homem que me encarava. A barba por fazer, os cabelos grisalhos despenteados e a camisa, que estava usando pelo terceiro dia consecutivo, pareciam pertencer a um estranho. Ou talvez a um fantasma do meu antigo eu. Aposentar-me foi como descer de um trem em uma estação deserta. Por mais de três décadas acordei cedo, tomei banho, escolhi a roupa do dia e fui ao encontro do mundo, quer tenha sido na iniciativa privada, em uma escola estadual, ou na Caixa econômica Federal, de onde saí para o tão almejado momento das férias intermináveis.   Nessa época, mesmo nos fins de semana, eu fazia a barba, vestia uma camiseta limpa e estampava no rosto a alegria de ser útil. Agora que os dias são um nada fazer contínuo, chego a ficar cinco, seis dias sem tocar no barbeador e o relógio de pulso fica esquecido na mesinha ao lado da cama. No início, achei libertador. "Finalmente sem chefe, sem horário e sem as metas q...

O sussurador

  O cavalo tinha o pelo tão preto quanto o carvão. Olhos assustadiços, em constante movimento, sarapantados, em permanente estado de alerta, como se estivesse buscando um ponto de fuga. As orelhas moviam-se em todas as direções, captando todo e qualquer som ao redor. Quando tentaram pegá-lo para domar, defendeu-se com o vigor dos coices e saltos e com as mordidas, que distribuía a granel. Um dos homens teve uma perna quebrada e por isso desistiram de amansá-lo e passaram a chamá-lo de Diablo. Naqueles tempos de fronteira indefinida, onde os ermos da pampa não tinham cercas, e os horizontes alongavam-se a perder de vista, era comum que, vez por outra, surgissem andarilhos em busca de ocupação – na maioria das vezes em troca de um teto e um prato de comida. Foi assim que apareceu Miguel. Quando perguntaram pelo sobrenome, respondeu que era Miguel e só. Franzino, meio índio, cabelo liso, tão escuro quanto o pelo do cavalo, escorrido até os ombros e preso por uma vincha de tento ...

Mestre Teneco

     Mestre Teneco era sambista. Era mestre não se sabe de que artes, já que mal sabia desenhar o próprio nome. Ostentava no dedo da mão direita um belo anel com uma safira azul, que comprou em um arrobo de vaidade, sacrificando a comida de vários dias na mesa da família e que, algum tempo depois, alguém lhe disse que era um anel de formando em engenharia.     Foi o suficiente para dar-lhe a ideia de criar o Bloco dos Engenheiros, composto em sua grande maioria pelos operários que carregavam sacos de arroz no engenho. Irônicos e debochados, tomaram para si o nome do bloco carnavalesco. Além deles havia os serventes da construção civil, os garis, as mulheres da esquina do boteco do Justa, e toda a vizinhança do bairro, que fazia da rua o palco para a festa do carnaval.     Além de carnavalesco, Teneco tocava atabaque na terreira do Pai João, onde as batidas convocavam as entidades com seu ritmo cadenciado e forte. Em contrapartida, causavam pr...

O homem que domava metais

     Seu Doralício era ferreiro. Fazia do carvão em brasa seu coadjuvante no domínio que tinha sobre o metal. Do ferro em brasa ele tirava facas, facões, enxadas e alavancas para o trabalho diário na cidade ou no campo. Fazia ferro para carroças; para os arreios do cavalo, fazia estribo, freio e argolas para peiteira e laço.      Encantava-me passar por ali e vê-lo puxando a corrente do imenso fole que soprava o carvão, para depois retirar o ferro vermelho em brasa e martelar contra a bigorna. Cada martelo era um tom. O martelo maior, que depois descobri chamar-se marreta, ele usava para a parte mais bruta, quando o ferro ainda não se amansara. À medida que a amizade do homem com o metal ia crescendo, diminuía o tamanho do martelo, o som se tornava mais agudo e mais suave. E dali saíam as ferramentas e adornos para o uso diário.      Por conversar tanto com o metal, ele quase não conversava com pessoas, o que acredito ter sido o motivo d...

Por que do título

   Manojo é uma unidade de medida imprecisa, já que se refere ao que cabe na mão. Partindo desse princípio, o manojo de uma criança é menor que o de um adulto e, mesmo entre estes, o tamanho da mão varia. Mas, e de onde veio a ideia desse título?  Foi há mais de duas décadas quando conversava com a querida professora Vane Soares e ela me relatava suas experiências em escolas da zona rural de Santana do Livramento. Na ocasião, contou que estava ensinando noções de quantidade aos alunos de uma sala multisseriada e, depois de explicar a dezena, centena, milhar, dúzia e meia dúzia, um aluno levantou a mão e disse que ela havia esquecido de citar o manojo. Na zona rural é expressão corriqueira colher um manojo de aveia para alimentar uma vaca, ou um manojo de salsinha para preparar a comida. Essa prática remete a Paulo Freire, quando diz que  "Não há saber mais ou saber menos. Há saberes diferentes" . Assim nasceu este despretensioso blog, que reúne histórias que escrevi ...