O Espelho da aposentadoria
Hoje pela manhã parei diante do espelho do banheiro e não reconheci o homem que me encarava. A barba por fazer, os cabelos grisalhos despenteados e a camisa, que estava usando pelo terceiro dia consecutivo, pareciam pertencer a um estranho. Ou talvez a um fantasma do meu antigo eu.
Aposentar-me
foi como descer de um trem em uma estação deserta. Por mais de três décadas acordei
cedo, tomei banho, escolhi a roupa do dia e fui ao encontro do mundo, quer
tenha sido na iniciativa privada, em uma escola estadual, ou na Caixa econômica
Federal, de onde saí para o tão almejado momento das férias intermináveis.
Nessa época, mesmo
nos fins de semana, eu fazia a barba, vestia uma camiseta limpa e estampava no
rosto a alegria de ser útil. Agora que os dias são um nada fazer contínuo, chego
a ficar cinco, seis dias sem tocar no barbeador e o relógio de pulso fica
esquecido na mesinha ao lado da cama.
No início,
achei libertador. "Finalmente sem chefe, sem horário e sem as metas que a
cada semana se mostravam como um Everest cada vez mais alto”, pensei. Mas a
liberdade veio com um silêncio incômodo. Ninguém mais comenta meu corte de
cabelo, meu perfume ou se minha barba está apresentável. Vez por outra, minha
esposa solta um "vai sair assim, amor?" — mas até ela desistiu. Me
sinto um móvel antigo: ainda útil, mas que ninguém repara na poeira em sua
superfície.
Descobri que o
desleixo é um luto disfarçado. Não só pelo trabalho, mas pela pessoa que eu era
quando ele me definia. Na empresa, eu tinha um sobrenome – era o Hélio da
Caixa, tinha uma função, um lugar no mundo. Agora, sou só um senhor que leva os
filhos à escola, vai à padaria, é reconhecido pela caixa do minimercado da
vizinhança e fala sobre o tempo com o vizinho também aposentado. Meu traje a
rigor é um par de chinelos e calça ou uma bermuda surrada, o que me torna invisível
aos mais jovens que embarcam no ônibus rumo ao trabalho.
Este relato me
permite uma conclusão: Talvez o segredo não seja voltar a ser quem eu era, mas
descobrir quem ainda posso ser. O espelho não precisa refletir um executivo,
mas também não precisa mostrar um derrotado. A partir de amanhã, talvez eu passe
a me barbear diariamente. Ou quem sabe apenas aceite que, nesta fase, a
elegância é opcional — mas o respeito por mim mesmo não deveria ser.
A aposentadoria,
meus amigos, não é o fim da linha. É só o momento em que a vida para de ditar o
figurino e entrega o direito de escolher: posso vestir o descaso ou a
dignidade. Hoje, vou de chinelos. Amanhã, quem sabe?
A propósito,
lembrei de uma frase que li por aí, acredito que numa revista: “Velho sim,
fedorento nunca!”. Até porque envelhecer também é uma narrativa que se
escreve no espelho.
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