O sussurador
O cavalo tinha o pelo tão preto quanto o carvão. Olhos assustadiços, em constante movimento, sarapantados, em permanente estado de alerta, como se estivesse buscando um ponto de fuga. As orelhas moviam-se em todas as direções, captando todo e qualquer som ao redor.
Quando tentaram
pegá-lo para domar, defendeu-se com o vigor dos coices e saltos e com as
mordidas, que distribuía a granel. Um dos homens teve uma perna quebrada e por isso
desistiram de amansá-lo e passaram a chamá-lo de Diablo.
Naqueles tempos
de fronteira indefinida, onde os ermos da pampa não tinham cercas, e os
horizontes alongavam-se a perder de vista, era comum que, vez por outra,
surgissem andarilhos em busca de ocupação – na maioria das vezes em troca de um
teto e um prato de comida.
Foi assim que
apareceu Miguel. Quando perguntaram pelo sobrenome, respondeu que era Miguel e
só. Franzino, meio índio, cabelo liso, tão escuro quanto o pelo do cavalo,
escorrido até os ombros e preso por uma vincha de tento trançado, sovada e
encardida pelos suores e a oleosidade do couro cabeludo.
Usava botas de
garrão de potro, bombacha remendada e uma velha camisa de algodão. De resto, só
tinha um poncho de lã crua, que o abrigava dos invernos.
Ajustou-se como
peão e ocupou um canto do galpão dos arreios, onde estendeu um pelego e fez a
cama. Ao final do primeiro dia de trabalho, nas conversas depois do jantar,
ficou sabendo do cavalo e fez a proposta ao patrão de levar Diablo consigo,
caso o domasse.
No domingo,
todos se reuniram em volta da mangueira com laços, cordas e boleadeiras a fim
de derrubar o animal para que o índio montasse. Ele, entretanto, dispensou a
ajuda e pediu para entrar sozinho e chegar perto do cavalo.
O animal estava
parado bem no meio da mangueira grande cercada de pedras. O sol refulgia
reflexos sobre o brilho da pelagem e ele tinha o olhar atento de presa, prestes
a fugir do ataque do predador. O homem aproximou-se, passo a passo, olhando
fixamente para um ponto entre os olhos do cavalo. Murmurando alguma coisa,
palavras estranhas que ninguém conseguia entender.
Diablo murchou
as orelhas, deu um, dois passos para trás, esboçou um relincho e abriu as
narinas, em uma típica postura defensiva. Para surpresa de todos, o homem
virou-lhe as costas e se sentou no chão, ainda sussurrando em seu dialeto
incompreensível.
Passados uns
quinze minutos, levantou-se e, para desapontamento geral da assistência, falou:
– Amanhã eu
volto. E foi beber água fresca à sombra das árvores.
Dia após dia o
ritual se repetiu, a ponto de ninguém mais dar importância, nem ao cavalo, nem
ao homem.
O verão já
começava a agonizar, na lenta e sucessiva rotina das estações, quando um dos
peões entrou correndo galpão adentro, chamando todos:
– Venham ver o
que o índio fez! Venham!
Na mangueira,
Diablo estava deitado no chão, as patas espichadas e a cabeça pousada na grama
rala. Sobre suas costelas estava Miguel, deitado de bruços, conversando e
afagando-lhe o pelo. Num repente, deu uma ordem e o animal pôs-se em pé,
carregando o homem em seu dorso.
O povo da
estância explodiu em palmas, aclamando a competência do homem e a docilidade do
cavalo. Incrédulo, o estancieiro perguntou-lhe o que fizera e o que dissera,
para conseguir tal façanha.
– É Guarani. Os
cavalos da pampa "entendem" nosso idioma.
Comentários
Postar um comentário